Para quem está boiando sobre o assunto, ocorreu um encontro de RPG em uma entidade chamada CENTUR, que fica na cidade de Belém do Pará. O evento foi organizado por várias entidades lúdicas locais. Vejam o panfleto do evento:
Bem, após a apresentação tosca do evento - que eu esqueci de fazer no blog a tempo de avisar os leitores paraenses do Masmorra Descuidada, sorry - vou passar para o relato daquilo que me lembro do evento.
Para começar, fui o responsável pela aventura “A lenda da Princesa de Salinas”, uma oneshot de investigação baseada em uma lenda que ouvi quando criança. Mas a descrição da sessão fica para a próxima parte deste artigo.
Imersão x Segurança Psicológica
Algo importante que me chamaram a atenção no evento era explicar “o que é rpg” para três pessoas que nunca haviam jogado antes. Nada demais, até que Gilson Rocha entrou na minha explicação tosca e fez algo que me fez sentir vergonha alheia:
Eu: …e então vocês vão contando o que seus personagens fazem, mas as regras do rpg estão ali para decidir quão bem seus personagens se saem.
Jogadora, Jogador 1 e Jogador 2: Ahm…
Gilson: Deixa eu explicar a eles como se joga rpg?
Eu: Vai lá!
Gilson: digamos que vocês interpretam a si mesmos e estão num barco em meio a um rio. De repente, o barco para e começa a afundar. O que vocês fazem?
Jogadora: eu me jogo na água!
Gilson: Sabe nadar?
Jogadora: Não.
Gilson: Então você começa a se debater na água e se afogar! E você? Vai fazer alguma coisa?
Jogador 1: Eu não sei nadar também. Não faço nada!
Jogador 2: Ídem!
Gilson: Pena, mas você morre!
Jogadora: O_O
Gilson: E é assim que uma sessão de rpg funciona…
Minha vergonha alheia surgiu por causa de algo muito importante: todo jogador possui virtudes e vícios, sendo que as regras de um rpg geralmente se voltam para a criação de personagens com suas próprias virtudes e vícios, aos quais o jogador possa transferir sua própria personalidade em jogo, gerando a imersão psicológica típica do rpg. Daí ser mais seguro fazer os jogadores interpretarem personagens parecidos com os mostrados em suas novelas, filmes ou séries favoritas.
Porém, fazer alguém interpretar a si mesmo num jogo de rpg pode pôr à mostra vícios que essa pessoa normalmente não revelaria em circunstâncias naturais, gerando uma forma de imersão que chega a ser perigosa - é de conhecimento público que vários tipos de fobias podem ser curadas usando métodos de imersão semelhantes ao que se usa em rpg’s modernos, o que me faz temer pela possibilidade de que a moça que participou da explicação do Gilson na verdade tenha ficado com os nervos abalados… já que ela deu uma desculpa qualquer para ir embora antes mesmo da sessão de jogo começar…
Dados x Cartas de Baralho
Outro evento incomum ocorreu quando uma repórter ficou curiosa quanto ao meu jogo, que usa cartas de baralho ao invés dos típicos dados multifacetados dos outros rpg’s presentes no evento. Naturalmente, ela veio me perguntar o porque da minha escolha:
Eu: Bem, esse é o fator aleatório do meu jogo. Os rpg’s costumam usar dados para decidir as coisas, o meu rpg usa cartas ao invés.
Repórter: Tá explicado… (com visível tom de decepção na voz). - E o que o levou a escolher cartas de baralho ao invés de dados?
Eu: É porque possuem melhor aceitação… (resolvi interromper a explicação porque minha teoria do “lance dos ossinhos” poderia lançar uma nova caça às bruxas rpgística na cidade - ou fazer a repórter morrer de rir!);
A repórter fez algumas anotações e passou para a próxima mesa. Ufa!
Bônus: a Teoria do “Lance dos Ossinhos”
Vou começar fazendo duas descrições. A comparação entre elas fica por conta do leitor.
Nos role playing games mais populares, geralmente há um tabuleiro chamado “mapa de combate”, usado para organizar detalhes táticos como posição e distância entre os personagens e seus oponentes. O “mestre do jogo” - como é conhecido o cara que organiza o jogo - pergunta aos jogadores, entre cada arremesso de dados, o que seus personagens fazem. Geralmente, cada jogador lança os dados nas ações de seu próprio personagem, mas nem sempre. O resultado dos dados determina quão bem o personagem se saiu na ação.
Nas religiões tradicionais africanas, há um tabuleiro chamado “jogo de búzios”, geralmente usado para consultar o futuro. O “adivinho” - como é conhecido o cara que vai consultar o futuro - reza, saúda e pergunta aos orixás sobre o futuro, fazendo o arremesso dos búzios, que são conchinhas que podem cair com o lado aberto ou fechado virado para cima (funcionando como uma moeda ou dado de 2 faces). É o adivinho que joga os búzios, sempre. Acredita-se que os orixás afetam a distribuição dos búzios sobre a mesa, respondendo desta forma às questões levantadas.
Perdoem-me se as descrições feitas são extremamente simplificadas, mas elas servem para mostrar aonde quero chegar: uma das razões pela qual os rpg’s costumam ser taxados de “jogo do demônio” é essa semelhança mínima entre o mapa de combate e o jogo de búzios, sendo o segundo uma forma de comunicação com os deuses africanos (que são demoníacos só na cabeça de religiosos fanáticos).
As várias tentativas de culpar o rpg por crimes também contribuíram para fortalecer essa imagem pejorativa no imaginário popular.
Essa foi uma das razões para minha escolha pelo baralho comum como fator aleatório do RPG Mistureba Generalizada, pois os dados multifacetados - com exceção do dado de seis lados - ainda possuem certa carga social negativa “por fazerem parte daquele jogo demoníaco”.
Claro, têm também aquela história de que os dados multifacetados fazem parte “daquele jogo de nerd’s”, mas a expressão “nerd” deixou de ser algo pejorativo a mais de uma década.
E a Princesa de Salinas, Demente?
Já disse que fica pra próxima. Até!